Pessoas com pernas de árvores abertas para deixar passar os fios de luz - Dayane
da origem do nome dessa temporada
Pessoas com pernas de árvores abertas para deixar passar os fios de luz. Esse é o nome, e o eixo, que compõe a linha narrativa desse segundo balanço-temporada desta newsletter; fragmentos de vidas que se embaralham em relatos onde tudo de fato aconteceu, mas nada é verdade.
Em 2016, uma sobrinha do meu pai, Dayane, veio me visitar. Começava setembro, aquele mês havia chegado turbulento e nauseabundo após o ato final do impeachment da Dilma. Ela, a Dayane, nasceu em Fortaleza, bem perto do mar, hoje tá com seus 47, 49 anos, mora em Bogotá e visitava pela primeira vez São Paulo. O final de semana que passou aqui coincidiu com o convite de Álvaro, um amigo que mora na zona leste; ia fazer um churrasco, abrir umas garrafas de vinho e juntar a galera para reclamar, no conforto do sofá, do show de Câmara que tinha tomado a sociedade brasileira. Dayane foi também.
Eu e ela nunca fomos muito próximos, se não me engano, a gente tinha se visto umas duas ou três vezes antes daquela visita. Eu só fui saber dela aos 10 anos quando fiz a primeira comunhão, a segunda vez que coincidimos, vários anos depois, foi no casamento do filho dela, ambos encontros lá em Bogotá.
Assim que chegamos na casa de Álvaro, ela tomou posse de um lugar no extremo do sofá, só saiu dali para ir ao banheiro. Vestia blusa verde escura de gola canoa e calça preta. Atrás dela, havia um balcão que fazia a divisão da cozinha com a sala, em cima deste, do lado das garrafas de vinho e da travessa da sobremesa, uma luminária de cimento de luz amarela, iluminava um balde de alumínio que fazia de vaso de uma jiboia, as sombras e luzes que se filtravam entre as folhas da trepadeira enfeitavam a cabeça de Dayane. Os cachos do cabelo dela pareciam revigorar só por receber a luz da luminária, seus olhos se tornaram mais escuros e a boca mais grossa. Eu não conseguia tirar os olhos dela. As pessoas falavam, reclamavam, gritavam sobre a pauta do dia: que foi golpe e fora Temer; por minha parte, eu me embrenhava no quadro à minha esquerda: sofá, balcão, garrafas, luminária, balde, jiboia, luz, sombra, cabelo, olhos, lábios. Como sentindo minha presença, num movimento instintivo, ela virou e olhou pra mim, sorriu e eu correspondi com uma pergunta:
¿Por qué te pusieron Dayane? La voz en español rasgó la discusión política de mis amigos y todas las miradas se dirigieron a la mujer del sofá.
¡Uy! Creo que fue por una cantante… no me acuerdo bien. Ya estoy vieja jajaja
Pero, ¿Fue tu mamá o tu papá que te lo puso?
Fue mi mamá. A ella le encantaba el forró y en la época que nací, había una cantante muy famosa que se llamaba Dayane.
Então sua mãe fez uma homenagem à artista preferida dela com você. Perguntou Camila que estava sentada no chão, na frente do sofá. Ela é amiga de Álvaro e Adriana, a namorada do meu amigo.
Não sei se ela pensou desse jeito, tipo fazer uma homenagem e tal. Acho que gostava muito das músicas dela, só.
¿Qué hacía tu mamá?
Era peluquera, le hacía las uñas a las mujeres del barrio, les arreglaba las cejas, las pestañas…
Serras? indagou estranhada Camila
Sobrancelhas, traduziu Dayane apontando para os pelinhos milimetricamente aparados acima de seus olhos
Y tú papá, es decir, mi tío ¿Qué hacía? Pregunté con una sonrisa mal dibujada que entendía como la forma menos imprudente de meterme en terrenos que nunca había pisado.
El sabor de esa palabra, tío, era tan ajena para mi, que me parecía una gran mentira tan solo pronunciarla. Nunca lo vi en persona, había una que otra foto suya en los álbumes de la casa de mis papás. Cuando preguntaba quién era ese muchacho que aparecía con mis abuelos en los retratos, mi papá se ponía serio y en tono grave decía: ese es César, su tío, antes de que se “escapara” a Brasil y PUNTO FINAL. Luego se hacía un silencio de ultratumba. Nunca me animaba a seguir preguntando.
Él hizo de todo -comenzó Dayane- trabajó en el puerto de Fortaleza, fue mecánico en un taller, de taxista y varias cosas más. ¿Sabías que quería ser futbolista?
¿Futbolista? Repetí como una cotorra bien entrenada y atontantada ante los nuevos descubrimientos familiares.
Sí, por eso fue que terminó aquí… bueno allá en Fortaleza -unas placas de hielo desde siempre inmóviles en mi interior, se fueron derritiendo dándole las primeras formas al rompecabezas de esa parte de la familia- él estaba enloquecido por el fútbol, pero enfermo. Por esa época la selección de Brasil ganó el mundial, creo que fue por el 70 o algo así y se vino dizque a aprender con los mejores. Imagínese el loco.
Putz mano! Seleção do 70, meu -Álvaro falou desde a cozinha- time foda pra caralho: Felix, Everaldo, Carlos Alberto, Britto, Piazza, Clodoaldo, Gerson, Rivellino, Jairzinho, Pelé e Tostão! segura essa malandro! Tricampeão do Mundo, porra! -na hora lembrei do meu pai e uma foto dele com seu irmão no álbum. Os dois agachados, a bola no meio dos dois, abraçados numa pelada-
Pera aí, Dayane - interrompeu Adriana, namorada de Álvaro e corinthiana roxa- seu pai jogou bola? não tô entendendo direto, fala em português carai hahaha
Não rsrsrs meu pai gostava muito de futebol e da seleção brasileira, só. Aí, ele acabou indo para Fortaleza, para ver se conseguia jogar. Mas era muito novo, tinha uns 22, eu acho.
Ah pra jogar bola já tava velho. E meu, na moral, quem vai para Fortaleza em… que ano que ele veio?
Se…tenn…ta? respondeu-duvidou Dayane.
Então, quem vem para Fortaleza, ao Nordeste do Brasil em 1970, para tentar a sorte como jogador de futebol? Meu, desculpa aí, eu não quero ser grossa, mas essa é conversa para boi dormir.
Caiu um silêncio na sala.
Eu não sei direito -voltou Dayane- acho que ele passou pelo Rio e ficou um tempo na Bahia antes de chegar em Fortaleza. O fato é que o cara era doido por futebol. ¿Mi tío nunca te dijo nada? Me preguntó.
Algunas veces le pregunté por él, cuando veíamos las fotos. Mi papá siempre ha esquivado el tema, entonces nunca supe bien. Es un asunto prohibido en la familia. Cuando se hablaba de César, mi papá se ponía bravo y mi abuela se iba al cuarto y se quedaba sola, no hablaba con nadie.
Sí… A mi tío le dolió mucho lo que hizo mi papá. Los dejó solos. A los pocos meses de haberse venido, el abuelito se murió y a mi tío le tocó ser el hombre de la casa. Fue muy duro para él. Sabes que por esa época las mujeres no trabajan y la abuelita era muy de la casa y nerviosa como para salir a buscar trabajo. Y para completar, se le había ido el niño de sus ojos, Cesitar, como le decía ella, era su adoración. Ese dolor nunca se le fue. Dayane se quedó mirando al vacío, parecía que el tema le movía hondos recuerdos.
Para quebrar aquele silêncio desconfortável, Camila tentou dar uma guinada na conversa.
E você faz o que na Colômbia?
Trabalho com marketing -disse Dayane num tom raso e ausente, com o olhar ainda perdido na parede em frente do sofá, sua mente estava lá, em algum meandro de sua memória-
Tem uma música… -a mirada continuava fixa na parede, mas seus lábios iam se alargando num sorriso escondido- tem uma música que me faz lembrar muito meu pai e minha mãe: Musa original, de Joe Arroyo. ¿Te acuerdas? ¿Joe Arroyo?
Sabía que me estaba preguntando a mí, a pesar de no mirarme. Nunca había escuchado esa canción, el nombre del cantante no me era extraño, pero no sabía nada de él.
Meu pai colocava quando voltava em casa à noite, sempre na hora que minha mãe fazia a janta. Ele puxava ela pra dançar. Era engraçado porque tinha dias que ficavam agarrados, bem grudados, encostados um no outro, quase nem saiam do lugar; às vezes, rodopiavam pela sala, pela cozinha, na casa inteira, no final da música acabavam suando, com a cara toda corada; havia dias que cada um ficava dançando na sua, improvisando os passos, quando se cruzavam, uma mão malandra deixava escapar um tapa na bunda, a seguir, um olhar dengoso respondia.
Baila papá, baila mamá, que e`to tá bueno
Baila papá, baila mamá, que e`to tá bueno
Eu também coloco essa música lá em casa, em Bogotá. À noite, quando preparo a janta, fico dançando igual meus pais. Dayane sorria com os olhos cravados na parede.
Na volta para casa, caminhando em direção à estação do metrô, Dayane olhava para o alto e me disse que achava um absurdo, e muito feio, por sinal, a quantidade de fios elétricos nas ruas de São Paulo. Aquilo deveria estar aterrado, era perigoso. Eu, honestamente, nunca havia pensado nisso.
Minutos depois, do nada, Dayane me contou um segredo: disse que seu filho não transava mais com a esposa dele, a nora tinha lhe dito. Eu fiquei desnorteado com a drástica mudança de tema, porém, fofoqueiro, prendi o ar e fiquei quieto para ela continuar. Ela já suspeitava, mas tinha certeza que não estava traindo a nora, disso não duvidava, falou que a razão era mais profunda, e talvez, mais cabulosa. Seu filho nunca dançou, sempre rejeitou os convites, a pista, as festas. Ela sempre achou estranha aquela atitude, ainda mais sendo filho dela, que dança sozinha em casa, e neto dos vovôs que rebolavam pela casa quase todas as noites. Segundo ela, pessoas que não dançam, não transam.
Pero Dayane, el mundo está lleno de gente que no baila y a pesar de eso, folla mucho, le dije.
Ella alzó los hombros, -¿Yo qué sé? Se me hace que es por eso.
Meses depois, sentado num banco da praça São Francisco da Glória em São Paulo, tinha uns caras podando as árvores cujos galhos passavam pela fiação elétrica. O trabalho precisa de enorme cuidado: eles trocam suas roupas por um macacão especial, colocam botas e luvas de material específico para não levar choque. Primeiro, um deles sobe no cesto do guincho e coloca um par de prendedores nos fios próximos da árvore, depois, alguém lhe passa uma motosserra, em seguida, o guincho se posiciona no lugar certo e começa a podar. Em baixo, o resto do time vai cortando com facão os galhos maiores e outros varrem e juntam tudo num canto. Aos poucos, enquanto o cara do cesto vai clareando o trajeto dos fios com sua motosserra, revela-se uma figura esquisita. No final da poda, a árvore parece uma pessoa de cabeça para baixo, com as pernas abertas dando passagem aos cabos entre elas. Aquilo me lembrou a história de Dayane e outras que tenho ouvido.